sem título

Pinturas murais

Tinta látex e spray sobre paredes de cimento e sobre torre-caixa d'água de  concreto

3 x 2,5 metros cada lado da casinha

6 x 2,5 (diâmetro) metros 

Santo André, SP (através do projeto LabUrbe)

2019


Pinturas realizadas com assistência de Macalé, morador local.


Publiquei um texto encomendado pelo projeto LabUrbe sobre minhas experiências na produção desses murais e de uma ação poético-educativa que realizei na comunidade local. O texto intitulado Às encruzilhadas entre arte e educação pode ser lido abaixo.

Às encruzilhadas entre arte e educação

2019



“Da ponte pra cá antes de tudo é uma escola”


A vida é pedagógica. É necessário atenção para perceber suas propostas educativas, colher o poético possível em cada passo, aprender e ensinar com ele. A vida traz suas simbologias que se completam em cada pessoa, sem enfileira-las para informar geral. É nessa batida, com a intenção da poesia e filosofia nos atos e fatos, que visualizo a encruzilhada entre as práticas de arte e educação. É busca. Buscas nos colocam em movimento. É neste que embarco rumo aos encontros e reencontros no Jardim Santo André pelo projeto LabUrbe, com o intuito de um vivenciar artístico-formativo.

Gosto de lembrar que “ensinar é uma aventura criadora”, sem esquecer que também aprende quem ensina e ensinamos ao aprender. Nesta aventura uma das funções educativas é provocar ou promover ocasiões e circunstâncias que potencializam a percepção crítica e criativa da própria realidade; propor experiências, construir narrativas e partilhar os sentidos destas. Isto me dá base para sugerir inicialmente às participantes das oficinas do projeto uma ação poético-pedagógica, onde a partir de um andar errante pelas ruas da região a fim de fotografar, aguçamos o olhar para o contexto onde convivem para nele pensar o que há entre o que nos afeta e o que afeta a outra pessoa, entre o que vemos de pontos diferentes, onde nossas percepções se encontram e quais trocas proporcionam. Neste escambo de ideias, em dois encontros na quebrada e uma visita à exposição de fotografia árabe contemporânea, no Instituto Tomie Ohtake, construímos conjuntamente vivências que romperam fronteiras, como a de que boa parte da turma nunca tinha ido à uma exposição de arte institucionalizada. Vivências que exercitam a construção de nossas próprias narrativas e a autoria de nossa própria história com as fotografias que mais tarde foram expostas na comunidade local. Vivências que deslocam o centro do mundo com os passos dados fazendo pensar o chão que se pisa.

A experiência destes três encontros, em companhia das participantes e no contexto do Jardim Santo André, reforça ainda mais em mim a ideia de que é na convivência com o outro que ampliamos a compreensão de mundo e nossa atuação nele. Taí uma das riquezas da proposta educativa que está também na produção de pinturas murais em espaços públicos; colocam-nos em contato com o entorno, nos proporcionam conversas variadas com outros universos. Neste contato tenho noção das diversas formas que meus trabalhos de arte podem se completar em outras pessoas e como retornam a mim, os sentidos que alguns constroem e que outros não encontram. É o caso da vizinha a um dos murais que pintei no bairro, que entre uma garrafa de água e outra que me dava em dias de pintura, dizia sobre seus motivos para sorrir e preocupar, que importante mesmo naquele momento era ter mais segurança na comunidade: “Os desenho é bonito, é bonito, mas pra que, né? Pra quê?”. Já Aninha, sempre presente, ouviu sobre a pintura e logo passou adiante para as outras crianças: “É o que você vê, não o que ele fala. O que você tá vendo?”. Se propunha a olhar junto e conversar sobre.

Em meio ao diálogo das pequenas e aos anseios da vizinhança me chega também a playlist que Maria botava durante os almoços no bar do Joaquim, alegrando o ambiente com batucadas e versos malandreados. Ritmo que me fez lembrar de certa vez dizer a um amigo sobre o desejo de que minha pintura fosse samba. Ao elaborar no muro formas e cores que vibram em busca de harmonia num construir sankofa, percebo diante delas a formação de uma roda que me remete a tal desejo. Roda puxada por Macalé, morador local e parceiro na produção das pinturas. Roda de bambas desenrolando histórias sobre amores, dores e cores, do crime ao creme, do passado ao futuro em tempo espiralar. Gosto de pensar que a poética do meu trabalho também tem a ver com isso, estas contações, inclusive com um tanto de história que nos foi e é negada. Histórias apagadas para perdermos referência, confundir nossa identidade. Histórias lembradas para seguir adiante e afirmar que “o passado torna-se nossa fonte de inspiração; o presente, uma arena de respiração; e o futuro, nossa aspiração coletiva”. Histórias lembradas para seguir adiante trazendo no inconsciente as observações realizadas por nossos ancestrais e dando sequência em seu desenvolvimento para chegar nas estruturas de um bem viver. E quando Thiago Vaz, mais um que encosta na roda, comenta que há algo de espiritual em meu trabalho, me faz pensar que o invisível que alimenta o mistério na dimensão do que a consciência não acessa está presente também, pois partilho do desejo que nossa imaterialidade, junto às divindades, à fauna e flora, aos elementos físicos, aos mortos, aos vivos e aos que ainda virão interajam, se complementem e somem em nossa caminhada de incessante transformação. Esta caminhada que volta o olhar para trás para não confundir o agora, pra desenvolver o humano, arrancar as cascas e acessar o cerne. Além disso, lembro e afirmo cantarolando que “o segredo da força do samba é a vivência do seu fundamento” e que “do poder da criação sou continuação e quero agradecer”:

“Gratidão...

Não há dinheiro que pague, não posso esquecer,

Se eu fugir das origens eu perco meu chão,

Obrigado meu povo por fortalecer...”

 


Referências citadas no texto:

Pedagogia da autonomia, Paulo Freire.

Performances do tempo espiralar, Leda Martins.

O lamento do samba, Paulo César Pinheiro.

Minha missão, João Nogueira e Paulo César Pinheiro.

Gratidão, Xande de Pilares.

foto por Karina

foto por Karina