Às encruzilhadas entre arte e educação
2019
“Da ponte pra cá antes de tudo é uma escola”
A vida é pedagógica. É necessário atenção para perceber suas propostas educativas, colher o poético possível em cada passo, aprender e ensinar com ele. A vida traz suas simbologias que se completam em cada pessoa, sem enfileira-las para informar geral. É nessa batida, com a intenção da poesia e filosofia nos atos e fatos, que visualizo a encruzilhada entre as práticas de arte e educação. É busca. Buscas nos colocam em movimento. É neste que embarco rumo aos encontros e reencontros no Jardim Santo André pelo projeto LabUrbe, com o intuito de um vivenciar artístico-formativo.
Gosto de lembrar que “ensinar é uma aventura criadora”, sem esquecer que também aprende quem ensina e ensinamos ao aprender. Nesta aventura uma das funções educativas é provocar ou promover ocasiões e circunstâncias que potencializam a percepção crítica e criativa da própria realidade; propor experiências, construir narrativas e partilhar os sentidos destas. Isto me dá base para sugerir inicialmente às participantes das oficinas do projeto uma ação poético-pedagógica, onde a partir de um andar errante pelas ruas da região a fim de fotografar, aguçamos o olhar para o contexto onde convivem para nele pensar o que há entre o que nos afeta e o que afeta a outra pessoa, entre o que vemos de pontos diferentes, onde nossas percepções se encontram e quais trocas proporcionam. Neste escambo de ideias, em dois encontros na quebrada e uma visita à exposição de fotografia árabe contemporânea, no Instituto Tomie Ohtake, construímos conjuntamente vivências que romperam fronteiras, como a de que boa parte da turma nunca tinha ido à uma exposição de arte institucionalizada. Vivências que exercitam a construção de nossas próprias narrativas e a autoria de nossa própria história com as fotografias que mais tarde foram expostas na comunidade local. Vivências que deslocam o centro do mundo com os passos dados fazendo pensar o chão que se pisa.
A experiência destes três encontros, em companhia das participantes e no contexto do Jardim Santo André, reforça ainda mais em mim a ideia de que é na convivência com o outro que ampliamos a compreensão de mundo e nossa atuação nele. Taí uma das riquezas da proposta educativa que está também na produção de pinturas murais em espaços públicos; colocam-nos em contato com o entorno, nos proporcionam conversas variadas com outros universos. Neste contato tenho noção das diversas formas que meus trabalhos de arte podem se completar em outras pessoas e como retornam a mim, os sentidos que alguns constroem e que outros não encontram. É o caso da vizinha a um dos murais que pintei no bairro, que entre uma garrafa de água e outra que me dava em dias de pintura, dizia sobre seus motivos para sorrir e preocupar, que importante mesmo naquele momento era ter mais segurança na comunidade: “Os desenho é bonito, é bonito, mas pra que, né? Pra quê?”. Já Aninha, sempre presente, ouviu sobre a pintura e logo passou adiante para as outras crianças: “É o que você vê, não o que ele fala. O que você tá vendo?”. Se propunha a olhar junto e conversar sobre.
Em meio ao diálogo das pequenas e aos anseios da vizinhança me chega também a playlist que Maria botava durante os almoços no bar do Joaquim, alegrando o ambiente com batucadas e versos malandreados. Ritmo que me fez lembrar de certa vez dizer a um amigo sobre o desejo de que minha pintura fosse samba. Ao elaborar no muro formas e cores que vibram em busca de harmonia num construir sankofa, percebo diante delas a formação de uma roda que me remete a tal desejo. Roda puxada por Macalé, morador local e parceiro na produção das pinturas. Roda de bambas desenrolando histórias sobre amores, dores e cores, do crime ao creme, do passado ao futuro em tempo espiralar. Gosto de pensar que a poética do meu trabalho também tem a ver com isso, estas contações, inclusive com um tanto de história que nos foi e é negada. Histórias apagadas para perdermos referência, confundir nossa identidade. Histórias lembradas para seguir adiante e afirmar que “o passado torna-se nossa fonte de inspiração; o presente, uma arena de respiração; e o futuro, nossa aspiração coletiva”. Histórias lembradas para seguir adiante trazendo no inconsciente as observações realizadas por nossos ancestrais e dando sequência em seu desenvolvimento para chegar nas estruturas de um bem viver. E quando Thiago Vaz, mais um que encosta na roda, comenta que há algo de espiritual em meu trabalho, me faz pensar que o invisível que alimenta o mistério na dimensão do que a consciência não acessa está presente também, pois partilho do desejo que nossa imaterialidade, junto às divindades, à fauna e flora, aos elementos físicos, aos mortos, aos vivos e aos que ainda virão interajam, se complementem e somem em nossa caminhada de incessante transformação. Esta caminhada que volta o olhar para trás para não confundir o agora, pra desenvolver o humano, arrancar as cascas e acessar o cerne. Além disso, lembro e afirmo cantarolando que “o segredo da força do samba é a vivência do seu fundamento” e que “do poder da criação sou continuação e quero agradecer”:
“Gratidão...
Não há dinheiro que pague, não posso esquecer,
Se eu fugir das origens eu perco meu chão,
Obrigado meu povo por fortalecer...”
Referências citadas no texto:
Pedagogia da autonomia, Paulo Freire.
Performances do tempo espiralar, Leda Martins.
O lamento do samba, Paulo César Pinheiro.
Minha missão, João Nogueira e Paulo César Pinheiro.
Gratidão, Xande de Pilares.