Sobre a leitura de Ponciá Vicêncio, por Emol. 2020
Durante a produção de pinturas tenho praticado o tempo da experiência, sem pressa e com as pausas necessárias. Sinto a necessidade de cuidar para que esse tempo da experiência não seja agredido pelo tempo do relógio ou do calendário. “O humano não tem força para abreviar nada e quando insiste colhe o fruto verde, antes de amadurar”.
A leitura de Ponciá Vicêncio, livro de Conceição Evaristo, reforça em mim essa ideia, entre outras que desperta, e de alguma forma percebo sua história em minhas pinturas. Percebo-me interrompendo o manuseio da arte e perseguindo “o manuseio da vida, buscando fundir tudo num ato só.” Futuro e passado são como linha de pipa embolada diante de meus pés, se fazendo presente a ser praticado.
O texto de Conceição é algo tão íntimo para mim, tão próximo da história que sinto dar continuidade, que fui espontaneamente partilhar com minha mãe, ler alguns trechos do livro para ela que nunca leu um. Li e me pus a ouvir as histórias antigas, das roças de Minas Gerais, do tempo das bonecas feitas de espigas de milho, de guardar o fogo sob as cinzas, de raspar o tacho dispensando o zinabre, de meu tio que também via o próprio vazio. Assim, Conceição Evaristo, nesses momentos de minha escuta diante de mamãe, se tornou para mim mais uma tia em volta do fogão à lenha, tomando café em cuia de coité e contando os causos junto com vovó e as primas mais velhas.
É dessas histórias que trago no passo, que faço minha poesia, sentindo a linha construída pelo encontro das cores, como as experiências que se sobrepõem em mim. Sigo compreendendo a vida e buscando entende-la como "matéria argamassa de outras vidas".
Gracias a Conceição Evaristo
Às encruzilhadas entre arte e educação, por Emol, sobre o projeto LabUrbe. 2019
“Da ponte pra cá antes de tudo é uma escola”
A vida é pedagógica. É necessário atenção para perceber suas propostas educativas, colher o poético possível em cada passo, aprender e ensinar com ele. A vida traz suas simbologias que se completam em cada pessoa, sem enfileira-las para informar geral. É nessa batida, com a intenção da poesia e filosofia nos atos e fatos, que visualizo a encruzilhada entre as práticas de arte e educação. É busca. Buscas nos colocam em movimento. É neste que embarco rumo aos encontros e reencontros no Jardim Santo André pelo projeto LabUrbe, com o intuito de um vivenciar artístico-formativo.
Gosto de lembrar que “ensinar é uma aventura criadora”, sem esquecer que também aprende quem ensina e ensinamos ao aprender. Nesta aventura uma das funções educativas é provocar ou promover ocasiões e circunstâncias que potencializam a percepção crítica e criativa da própria realidade; propor experiências, construir narrativas e partilhar os sentidos destas. Isto me dá base para sugerir inicialmente às participantes das oficinas do projeto uma ação poético-pedagógica, onde a partir de um andar errante pelas ruas da região a fim de fotografar, aguçamos o olhar para o contexto onde convivem para nele pensar o que há entre o que nos afeta e o que afeta a outra pessoa, entre o que vemos de pontos diferentes, onde nossas percepções se encontram e quais trocas proporcionam. Neste escambo de ideias, em dois encontros na quebrada e uma visita à exposição de fotografia árabe contemporânea, no Instituto Tomie Ohtake, construímos conjuntamente vivências que romperam fronteiras, como a de que boa parte da turma nunca tinha ido à uma exposição de arte institucionalizada. Vivências que exercitam a construção de nossas próprias narrativas e a autoria de nossa própria história com as fotografias que mais tarde foram expostas na comunidade local. Vivências que deslocam o centro do mundo com os passos dados fazendo pensar o chão que se pisa.
A experiência destes três encontros, em companhia das participantes e no contexto do Jardim Santo André, reforça ainda mais em mim a ideia de que é na convivência com o outro que ampliamos a compreensão de mundo e nossa atuação nele. Taí uma das riquezas da proposta educativa que está também na produção de pinturas murais em espaços públicos; colocam-nos em contato com o entorno, nos proporcionam conversas variadas com outros universos. Neste contato tenho noção das diversas formas que meus trabalhos de arte podem se completar em outras pessoas e como retornam a mim, os sentidos que alguns constroem e que outros não encontram. É o caso da vizinha a um dos murais que pintei no bairro, que entre uma garrafa de água e outra que me dava em dias de pintura, dizia sobre seus motivos para sorrir e preocupar, que importante mesmo naquele momento era ter mais segurança na comunidade: “Os desenho é bonito, é bonito, mas pra que, né? Pra quê?”. Já Aninha, sempre presente, ouviu sobre a pintura e logo passou adiante para as outras crianças: “É o que você vê, não o que ele fala. O que você tá vendo?”. Se propunha a olhar junto e conversar sobre.
Em meio ao diálogo das pequenas e aos anseios da vizinhança me chega também a playlist que Maria botava durante os almoços no bar do Joaquim, alegrando o ambiente com batucadas e versos malandreados. Ritmo que me fez lembrar de certa vez dizer a um amigo sobre o desejo de que minha pintura fosse samba. Ao elaborar no muro formas e cores que vibram em busca de harmonia num construir sankofa, percebo diante delas a formação de uma roda que me remete a tal desejo. Roda puxada por Macalé, morador local e parceiro na produção das pinturas. Roda de bambas desenrolando histórias sobre amores, dores e cores, do crime ao creme, do passado ao futuro em tempo espiralar. Gosto de pensar que a poética do meu trabalho também tem a ver com isso, estas contações, inclusive com um tanto de história que nos foi e é negada. Histórias apagadas para perdermos referência, confundir nossa identidade. Histórias lembradas para seguir adiante e afirmar que “o passado torna-se nossa fonte de inspiração; o presente, uma arena de respiração; e o futuro, nossa aspiração coletiva”. Histórias lembradas para seguir adiante trazendo no inconsciente as observações realizadas por nossos ancestrais e dando sequência em seu desenvolvimento para chegar nas estruturas de um bem viver. E quando Thiago Vaz, mais um que encosta na roda, comenta que há algo de espiritual em meu trabalho, me faz pensar que o invisível que alimenta o mistério na dimensão do que a consciência não acessa está presente também, pois partilho do desejo que nossa imaterialidade, junto às divindades, à fauna e flora, aos elementos físicos, aos mortos, aos vivos e aos que ainda virão interajam, se complementem e somem em nossa caminhada de incessante transformação. Esta caminhada que volta o olhar para trás para não confundir o agora, pra desenvolver o humano, arrancar as cascas e acessar o cerne. Além disso, lembro e afirmo cantarolando que “o segredo da força do samba é a vivência do seu fundamento” e que “do poder da criação sou continuação e quero agradecer”:
“Gratidão...
Não há dinheiro que pague, não posso esquecer,
Se eu fugir das origens eu perco meu chão,
Obrigado meu povo por fortalecer...”
Referências citadas no texto:
Pedagogia da autonomia, Paulo Freire.
Performances do tempo espiralar, Leda Martins.
O lamento do samba, Paulo César Pinheiro.
Minha missão, João Nogueira e Paulo César Pinheiro.
Gratidão, Xande de Pilares.
Caminhos, por Emol, texto de parede para pintura mural no Instituto Tomie Ohtake. 2019.
Na sabedoria das encruzilhadas vive o imprevisível
Vivem todas as possibilidades
O que atravessa reinventa, entronca e altera pela soma
Toma por experiência sem ignorar ou negar
Passos dados não são substituíveis
O incrível em meio a encantos e segredos
Enredos e enleios no percurso, o curso dos saberes vivos
No confronto e no conflito...
Tudo é caminho
A boca que educa lentamente devorando
Da esquina do mundo, sem perguntas, cultiva a observação:
a parte que nos cabe na decisão
o que emancipa sem impor barganha
quem ganha na distância entre palavra e ação
O mergulho no espelho que gera cristas e ventres
Partilha sentidos com sugestão desalinha
Que a porta da casa tenha a fartura da cozinha.
Referências utilizadas para o texto:
Pedagogia das encruzilhadas, Luiz Rufino.
As vinte e uma faces de Exu na filosofia afrodescendente
da educação, Emanoel Luiz Roque Soares.
Mitologia dos Orixás, Reginaldo Prandi.